terça-feira, 8 de novembro de 2011

De 1789 a 1989: futuros possíveis

Nessa semana, discuti no primeiro e no terceiro ano, respectivamente, os temas Revolução Francesa e Guerra Fria. O que esses dois temas possuem em comum? Qual a importância da Revolução Francesa para os conflitos ideológicos do século XX? Pensando nessas questões, convido-os a uma viagem com data de início e de chegada – de 1789 a 1989.
Copérnico. De revolutionibus orbium
coelestium
, 1543.
Relembrando as aulas no primeiro ano, a expressão "revolução" foi usada pela primeira vez na obra de Copérnico, De revolutionibus orbium coelestium, de 1543, para caracterizar um movimento cíclico e necessário dos astros. Especificamente, a trajetória orbital dos planetas em torno do sol. A concepção de “revolução” como um movimento cíclico se coaduna à própria relação com o tempo estabelecida naquele momento. O tempo era visto como um movimento cíclico, onde a história ocuparia a função de selecionar e guardar seus exemplos para as próximas gerações. De acordo com Koselleck (2006), mesmo que o Cristianismo tenha inaugurado uma perspectiva de tempo linear – do nascimento de Cristo (momento único e irrepetível) à Salvação -, ainda sim a concepção cíclica do tempo deixa seus resquícios. A história secular passa a ser uma sucessão de acontecimentos que se repetem (sucessão de governos, guerras e etc.), cabendo o tempo linear apenas àqueles que possuem a vida eterna e olham com indiferença os eventos do mundo pagão, dirigindo sua perspectiva de futuro para a promessa de a vida eterna.


Eugène Delacroix. A Liberdade guiando o povo. Óleo sobre tela, 260 cm × 325 cm. Paris: Museu do Louvre. 
É com a Revolução Francesa que o termo “revolução” passa a significar a emergência de algo novo sem precedentes, da mesma forma como se processou a mudança semântica da palavra história para História - da forma singular de história como uma conexão de acontecimentos para a concepção de História como um processo de sentido imanente. Desta forma, a palavra “revolução” passou de um termo que podia englobar diversas revoluções para um movimento ímpar: a Revolução. A Revolução Francesa torna-se, portanto, a origem e o destino da História. No limite desse processo, a Revolução incorpora a própria História, na medida em que a história universal é a história da Revolução Francesa em suas várias etapas (KOSELLECK, 2006). O socialismo ancora-se como herdeiro da Revolução Francesa, responsável pela conclusão de seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O socialismo é tomado como etapa natural da História, cujo movimento é irreversível, cabendo aos homens somente a tarefa de acelerar seu curso. Nessa perspectiva, a Revolução é legítima e em seu nome todos os meios são legítimos, inclusive o uso da violência e do terror, como no governo de Stálin. Segundo Koselleck (2006, p.77), “a relação entre as palavras e seu uso é mais importante para a política do que qualquer outra arma”.

Stálin: o capitão. Aquele que guia o povo, que os direciona ao caminho correto e próspero.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm (1995), o século XX foi marcado pela luta do capitalismo para se manter, e, do socialismo para se instalar e conduzir a História ao seu futuro – o comunismo. Entretanto, nesse combate, o capitalismo findou o século XX mais hegemônico que nunca. E, mais recentemente, temos acompanhado os efeitos da crise econômica nos EUA e na Europa, assim como o nascimento de protestos contra o sistema capitalista em todo o mundo (Imagens aqui). 
Propaganda do governo americano
contra o comunismo.  
Durante a Guerra Fria o mundo foi dividido entre dois blocos: o capitalista (EUA, Canadá, Itália, Inglaterra, Alemanha Ocidental, França, Suécia, Espanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Áustria e Grécia) e o socialista (URSS, Cuba, China, Coréia do Norte, Romênia, Alemanha Oriental, Iugoslávia, Albânia, Tchecoslováquia e Polônia), assim definido de maneira bem geral. Diversos autores sublinham a inexistência de um perigo real de destruição durante a Guerra Fria. De acordo com Hobsbawm (1995), a URSS não representava um perigo real para o bloco capitalista, pois assumiu durante o período uma postura defensiva. Talvez pela certeza de que a história seguiria o seu curso natural e inalterável em direção ao comunismo. Ainda de acordo o historiador inglês, os EUA assumiram uma atitude agressiva frente ao socialismo, promovendo uma Caça às Bruxas para angariar votos nas eleições.
De 1945 a 1953, o socialismo soviético vivia seu momento de expansão, marcando posição com a Guerra da Coréia (1950-1953). Segundo Eric Hobsbawm (1995) e Daniel Aarão Reis (2008), até a morte de Stálin em 1953 – que acreditava na substituição inevitável do capitalismo pelo comunismo -, o regime socialista passava por seu apogeu, estendido até a vitória sobre os EUA na Guerra do Vietnã (1959-1975). O mundo marchava para o socialismo.


Em 1985, Gorbatchev dá início à reconstrução soviética – perestroika. Entre suas principais medidas estão: a diminuição do investimento e da produção armamentista; a busca de um equilíbrio entre o pesado centralismo estatal e a autonomia das empresas; transparência na gestão do governo – glasnost. Existem muitas divergências historiográficas sobre os fatores impulsionadores das reformas comandadas por Gorbachev na URSS, as principais são: a pluralidade cultural que impedia a criação de uma unidade nacional (Cf: Hélène Carrère d’Encausse); a formação da burocracia como uma nova classe explorada simpatizante aos ideais capitalistas (Cf: MilovanDjilas); e, a queda da taxa de crescimento da União Soviética em virtude dos altos gastos investidos na corrida armamentista (Cf: Holloway e Hobsbawm). Muito divulgadas na mídia à época, duas pretensas causas são duramente questionadas pelo historiador Ângelo Segrillo (2000): as pressões internas por maior abertura política; e, o descontentamento popular gerado pelo empobrecimento dessa camada social. Para o autor, as causas da perestroika estão no declínio econômico causado pela incapacidade da União Soviética de acompanhar o desenvolvimento tecnológico experimentado pelos demais países, em especial a EUA, hipótese também levantada por Hobsbawm ao lado de outras.
Representação do Partido Comunista da URSS,
no final da década de 80.
A reestruturação da União Soviética a partir da década de 80 resultou em um verdadeiro “furacão” político, social e econômico, na medida em que as mudanças naquele país resultaram na reestruturação do equilíbrio de poder e na expressiva emergência do neoliberalismo pelo mundo. A nova orientação política e econômica da URSS trouxe o discurso neoliberal para o centro do debate. Nas eleições pós-perestroika realizadas no Brasil, por exemplo, o debate sobre a questão da privatização foi marcado por referências à União Soviética (SEGRILLO, 2000).
Todas as medidas executadas por Gorbatchev geraram críticas ferrenhas ao seu governo, acusando-o, principalmente, de trair o socialismo ou de atrasar a marcha da História. No ano de 1989, a última barreira do capitalismo na Europa Central desmorona. A queda do muro de Berlim instaurou um tempo de incertezas.


Capital do Terceiro Reich e dividida após a Segunda Guerra, a cidade de Berlim representa bem o descentramento experimentado após 1989. Durante toda a década de 90, uma intensa discussão e um grande investimento foram direcionados para projetos urbanísticos e museológicos na área onde se fixava o muro. O que fazer? Que relações manter com o passado, mas também e, principalmente, com o futuro? Monumentalizar o passado ou construir um novo presente? Como nos apontou o historiador francês François Hartog (2003), Berlim transformou-se em uma cidade emblemática, lugar de memória, marcada, assim como toda a sociedade ocidental, pela necessidade do esquecimento e o dever da memória. A cidade apresenta-se entre vários regimes de tempo, esboçando um tenso diálogo com seu passado e lançando-se timidamente no futuro.
Por fim, deixo um vídeo tocante. Em novembro de 1989, sentado em frente a uma das partes ainda erguidas do muro de Berlim, um senhor toca seu violoncelo. Esse senhor é o músico russo Rostropovich, considerado um dos melhores violoncelistas do século XX. Após anos de luta pela liberdade de expressão em seu país e de ver vários amigos presos, Rostropovich fugiu da URSS em 1974 e teve sua cidadania cassada. Quando questionado os motivos que o levaram até aquele lugar, naquela data, ele apenas disse: "Foi o que meu coração ditou".


Bibliografia:
HARTOG, François. Régimes d'historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Crise e Desagregação do socialismo. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste. (Orgs.). O século XX. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras. 4. ed. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
SEGRILLO, Ângelo. O Declínio da União Soviética. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.